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entre redes e pranchas

  • larissashanti
  • 25 de jun.
  • 3 min de leitura

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O vento muda. O céu desbota. O mar engrossa como caldo de tainha.

É assim que o inverno chega à Ilha.

Não precisa de avisos. Os olhos dos pescadores já sabem.

Eles observam o horizonte e sentem no corpo: vem cardume por aí.

Embaixo da lona surrada, o barco dormia há meses.

A rede esperava.

Mas o ar ganhou cheiro de peixe.

Acordando a comunidade que se movimenta como uma engrenagem antiga e orgânica.

Cada um sabe o seu tempo: quem acorda antes do sol, quem amarra os nós, quem olha as ondas, quem puxa junto.

A pesca da tainha é mais que sustento.

É rito.

É linguagem herdada, saber de gerações.

É grito no vento, reza baixa, força nas pernas, fé no que não se vê.

Durante semanas, o mar vira um templo.

E, como todo templo, pede silêncio.

Pede respeito.


Enquanto isso, às margens nasce outro movimento.

As praias da Ilha, que no verão explodem em movimento, têm seus trechos fechados.

Sinalizações aparecem, cordas se estendem, fiscais circulam, e com eles, vem a frustração de quem vive outro tipo de relação com o mar.

O surfista observa do calçadão a onda perfeita quebrar, sem poder entrar.

Pra quem não conhece, pode parecer um detalhe.

Mas não é.

Porque ali também mora um ritual.

Tem quem acorda antes da cidade, quem sente o vento no rosto e sabe que o mar está bom.

Tem quem cura o estresse, o medo, a raiva deslizando sobre a espuma.


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Durante três meses, a paisagem da Ilha muda, transformando hábitos, humores, acessos.

Alguns chamam de preservação da cultura.

Outros, de privilégio de poucos.

O que ninguém pode negar é que a praia, no inverno, revela mais do que redes e ondas: revela nossa capacidade, ou dificuldade, de coexistir.

O encontro dessas duas culturas, a da rede e a da prancha, nem sempre é pacífico.

De um lado, o pescador que vê no surfista uma ameaça: o corpo deslizando na água espanta os cardumes sensíveis, atrapalha a leitura do mar, aumenta o risco nas puxadas de rede.

Do outro, o surfista que vê no pescador uma cerca invisível num espaço que sempre foi de liberdade.

E, quando o desejo de um encontra o território do outro, nem sempre há diálogo.

Já houve gritos, xingamentos, empurrões.

Às vezes, o mar vira um ambiente hostil empobrecendo a todos.

Mas em alguns lugares, surge um sopro de entendimento.

Na praia do Campeche, pescadores e surfistas construíram um acordo simples e bonito:

Quando o mar está grande demais para as redes, os pescadores levantam uma bandeira, sinalizando que os surfistas podem entrar.

Um reconhecimento de que há espaço e tempo para todos, desde que haja escuta.

Esse gesto vale mais que qualquer placa. Ele mostra que coexistir não é apagar diferenças, mas transformá-las em acordos.

Essa história pequena, local, reflete algo muito maior.

Num mundo atravessado por polarizações — direita e esquerda, feminino e masculino, tradição e inovação, centro e periferia, liberdade individual e bem coletivo — a convivência parece ter se tornado uma arte em risco de extinção.

A escuta rareia, a paciência some, o “nós” encolhe enquanto o “eu” cresce.

Esquecemos que o mundo não é um jogo de soma zero. Que ceder espaço não é perder espaço. Que o tempo do outro também nos pertence.

O inverno chega para lembrar que há uma beleza profunda em aceitar o ritmo da estação.

Que no frio, na espera, na retração, a vida também acontece.

Que não é sempre verão, nem precisa ser.

Porque nos intervalos, nos revezamentos, nas pausas, a gente aprende o mais difícil e o mais essencial: que viver junto não é ocupar tudo ao mesmo tempo, mas encontrar lugar até onde parece não haver.

Na praia, no mundo, no coração.

No fim, talvez todos busquemos a mesma coisa quando olhamos para o mar: voltar para casa com algo dentro.

Um peixe, uma onda, ou apenas a sensação de que, ali, naquele instante, se viveu algo verdadeiro.

E, quem sabe, o aprendizado de se colocar, nem que por um instante, no lugar do outro.


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